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Relações interespecíficas nas aves de rapina
Por: Willian Menq | 10 de maio de 2011
 
 


Caracará (C. plancus) brigando com gavião-de-asa-telha (Parabuteo unicinctus). Foto: J. Rich

Em um mesmo ambiente pode ser encontrada dezenas de espécies de aves de rapina. Áreas preservadas como o Parque Estadual Intervales, em São Paulo, existem mais de 20 espécies de gaviões, além de várias espécies de falcões e corujas. Em algumas partes da Amazônia, a diversidade encontrada em um mesmo ambiente pode ser ainda mais impressionante.

Fato é, que as aves de rapina estão constantemente interagindo uma com as outras na natureza, e essa coexistência normalmente é viabilizada pela diferenciação da dieta, hábitat, comportamento ou até pela morfologia (Jaksic et al. 1981).

Mas nem sempre o convívio entre as espécies de rapinantes é pacífico, espécies com requerimentos de hábitat/dieta parecidos, geralmente brigam quando encontram uma a outra. Outras, reagem agressivamente na presença de outra espécie. A seguir, os tipos de interações interespecíficas mais comuns entre os rapinantes.

Competição

A competição significa concorrer pela obtenção de um mesmo recurso do ambiente. Nas aves de rapina, a competição ocorre geralmente por território, por locais para nidificação, abrigo, alimento, etc. Diferentes espécies de urubus brigam entre si para disputar o melhor pedaço de uma carcaça; rapinantes planadores, quando encontram outros indivíduos sobrevoando seu território costumam interagir agressivamente (através de voos rasantes e vocalizações territoriais) até expulsar a outra ave do local; falcões-florestais (Micrastur spp.), defende agressivamente seu território de nidificação, uma vez que ocos em árvores, ou cavidades em cavernas (onde nidificam), são recursos escassos nos habitats em que vive.

Comportamento de tumulto (Mobbing behaviour)

Como são predadoras, as aves de rapina são temidas por outras aves, inclusive por outras rapineiras. Por esta razão, são frequentemente atacadas e perseguidas por espécies menores. Essa postura antipredatória e agressiva das aves contra um potencial predador é chamada de “comportamento de tumulto (“Mobbing behaviour” em inglês). Normalmente, o comportamento de tumulto é caracterizado por exibições visuais e vocais, além de mudanças frequentes de posição, com movimentos voltado ao predador. Frequentemente, o comportamento inclui investidas e rasantes no predador, podendo incluir até ataque direto/contato físico. Raramente os rapinantes respondem aos ataques, embora algumas espécies podem se aproveitar do momento para capturar uma presa.

O comportamento de tumulto é uma das interações mais observadas entre as aves de rapina. É comum ver gaviões menores atacando rapinantes maiores, quiriquiri (Falco sparverius) acuando caracarás (Caracara plancus), falcões-de-coleira (Falco femoralis) contra gaviões-de-cauda-branca (Geranoaetus albicaudatus), entre outros casos.

Espécies de comportamento social que nidificam em colônias, como é o gavião-tesoura (Elanoides forficatus), costumam unir-se em bandos para acuar uma potencial ameaça próxima a seus ninhos. Azevedo & Di-Bernardo (2005) observaram na ilha de SC, gaviões-tesoura se reunindo em bando de 4 até 30 indivíduos para afugentar outros gaviões potencialmente perigosos. Nessas interações, cada indivíduo executava um mergulho rápido, acompanhado de vocalização, e passava próximo ao dorso do intruso. Gaviões afugentados, por vezes, giravam o corpo em voo e protraíam as garras, mas não intimidavam os gaviões-tesoura. Um bando com 18 indivíduos de E. forficatus perseguiu até afugentar um gavião-pega-macaco (Spizaetus tyrannus) presente em um local com ninhos.

Às vezes, o comportamento de tumulto pode envolver mais de uma espécie de rapinante contra outra ameaçadora. Na Reserva Biológica das Perobas, noroeste do Paraná, observei um grupo de quatro gaviões-tesoura (Elanoides forficatus) e dois sovi (Ictinia plumbea) se unindo para acuar através de voos rasantes um gavião-pato (Spizaetus melanoleucus) que passava voando baixo pelo local.


Interação agonística: Caracará atacando uma jovem águia-cinzenta (H. coronatus), para acuá-la do local. Ubatuba/SP, Setembro de 2009.
Foto: Roberto Negraes

Gavião-de-cauda-branca (Geranoaetus albicaudatus) tentando acuar através de rasantes uma águia-cinzenta. Ribeirão Vermelho/MG, Junho de 2010.
Foto:
Kassius Santos

 

Cleptoparasitismo

O cleptoparasitismo é um mecanismo de interação no qual um indivíduo rouba algum recurso (geralmente alimento) de outro animal. Essas aves “piratas” geralmente roubam presas recém capturadas por outro rapinante, assim se beneficiam tanto por obter uma presa que talvez não conseguisse sozinha como pelo ganho de tempo e diminuição do esforço para consegui-la (Freitas & Lemos 2006).

Nas aves de rapina, o cleptoparasitismo ocorre em diversas espécies. Nos EUA é comum casos de águias-americanas (Haliaeetus leucocephalus) roubando presas de Buteo regalis, Buteo jamaicensis, Buteo lagopus, Aquila chrysaetus e até de membros da própria espécie. De acordo com Jorge & Lingle (1998), as águias roubam presas com maior frequência nos invernos rigorosos, quando o gelo sobre a água impede a pesca das águias. No Brasil, o gavião-peneira (Elanus leucurus) costuma ser a vítima mais frequente de cleptoparasitismo, quase sempre saqueado por falcões-de-coleira (Falco femoralis), caracarás (C. plancus) e outros gaviões de áreas abertas, normalmente ele não se defende do roubo. Já o caracará (C. plancus), que é bastante oportunista, parece ser o cleptoparasita mais comum, roubando presas de várias espécies de gaviões e falcões.

Os principais fatores que pode desencadear o cleoptoparasitismo nas aves de rapina são: alimento principal escasso, grande concentração de espécies hospedeiras (as vítimas) e alimento visível (Brockman & Barnard, 1979). Adicionalmente, Paulsen (1985) considera que paisagens abertas contribuem para a ocorrência do cleoptoparasitismo. Isso porque nestas áreas o cleptoparasita pode observar e encontrar os hospedeiros mais facilmente, o cleptoparasita dificilmente consegue se esconder e os itens predados podem ser facilmente encontrados quando são abandonados pelo hospedeiro.

Predação entre aves de rapina

A predação entre as aves de rapina é uma das interações menos relatadas no Brasil, já que é difícil de presenciar. É provável que rapineiros maiores são capazes de predar espécies menores, embora os menores sejam bem mais ágeis, e consequentemente, difíceis de serem capturados.

Entre os rapinantes diurnos, Jorge Albuquerque já relatou em Porto Alegre/RS, a predação de falcão-peregrino (Falco peregrinus) sobre um quiriqui (Falco sparverius), o pesquisador encontrou no alto de um edifício os restos do quiriquiri em um poleiro de alimentação do peregrino. Sick (1997) relata que gavião-carijó (Rupornis) costuma predar corujas pequenas em seus abrigos diurnos. Na Amazônia Peruana, Robinson (1994) registrou o consumo de coruja-preta (Strix huhula) por gavião-pega-macaco (Spizaetus tyrannus).

Entre as corujas brasileiras, a maioria dos casos de predação envolve a murucututu (Pulsatrix) ou a jacurutu (Bubo virginianus) que são as maiores, contra corujas menores. No município de Itarumã/GO, Santos (2009) encontrou no ninho de murucututu (Pulsatrix perscipillata), restos de uma coruja-buraqueira (Athene cunicularia). A coruja jacurutu (Bubo virginianus), outra grande predadora de corujas menores, costuma predar suindaras (Tyto furcata), coruja-buraqueira, corujinha-do-mato (Megascops choliba) e provavelmente outras corujas. Sabe-se que na América do Norte, o falcão-peregrino está entre as vítimas de Bubo virginianus.

Em reproduções de playback não é raro ver espécies maiores (como murucututus) serem atraídas pelo som de espécies menores (Megascops spp), talvez essa atração seja para predação e não defesa de território. É comum também, ao reproduzir o som de uma coruja grande, espécies menores serem inibidas pela “presença” da outra, demonstrando um comportamento de “medo” (Granzinolli & Motta-Junior, 2008). Acredita-se que a predação entre as corujas seja um fenômeno raro, considerando que são aves bem cautelosas. Possivelmente as corujas que se tornam vítimas pelas maiores, são indivíduos jovens ou debilitados.


Filhotes de Bubo virginianus no ninho, com restos de coruja suindara (Tyto alba) capturada pela espécie. Lavras/MG, Julho de 2009. Foto: Kassius Santos

Allopreening entre Caracara e urubu-de-cabeça-preta. Urbelândia, MG. Foto: Henrique Nazareth Souto
(Adaptado de: Souto et al. 2009)

Mas nem todas as interações entre as aves rapineiras são negativas, há também relações positivas. Gaviões planadores (ex. Buteo, Rupornis) voam pacificamente na mesma corrente de ar quente com outros gaviões e urubus, algumas espécies até compartilham poleiro em uma mesma árvore. Há também interações mais íntimas e complexas, como é o caso do Allopreening.

Allopreening

O Allopreening é um comportamento social onde membros de determinada espécie executam a limpeza em outro individuo pertencente ao seu grupo social. Quando ocorre em duas espécies diferentes é chamado de Allopreening interespecifico. Nas aves de rapina, há relatos de cativeiro da coruja-aluco (Strix aluco) realizando Allopreening em mocho-galego (Athene noctua) (Harrison, 1965). Na natureza o Allopreening entre urubus-de-cabeça-preta (Coragyps atratus) e caracarás (Caracará plancus) é um exemplo clássico deste comportamento (e.g. Palmeira 2008, Souto et al. 2009).

Palmeira (2008) observou em Corumbá/MS, um urubu-de-cabeça-preta alisando as penas da cabeça de um carcará que estava visivelmente excitado e retribuía o ato fazendo o mesmo no peito do urubu. Ambos assumiam, claramente, uma postura cooperativa favorecendo a interação. O Allopreening interespecifico ainda é pouco conhecido, as hipóteses para explicar tal comportamento são várias, entre elas: remoção de ectoparasitos, posicionamento hierárquico e re-estabelecimento do bom convívio. Em São Paulo, Julio A. B. Monsalvo (com. pess.) observou algumas vezes, jovens caracarás mais ou menos inexperientes realizando Allopreening em urubus-de-cabeça-preta, de acordo com o pesquisador, essas observações reforça a hipótese do comportamento ser uma estratégia de submissão para serem aceitos entre os urubus e forragearem juntos.

Referências

Azevedo, M. A. G. & Di-Bernardo, M. (2005) História natural e conservação do gavião-tesoura, Elanoides forficatus, na Ilha de Santa Catarina, sul do Brasil. Ararajuba 13 (1): 81-88.

Brockman, H. & Barnard, C. (1979) Kleptoparasitism in bird. Animal Behavior. 27: 487-514.

Freitas, A.A.R., & M. Lemos. (2006) Cleptoparasitismo em aves de rapina. Boletim ABFPAR 9(1):39-43.

Granzinnolli, M. A. M. & Motta-Junior, J. C. (2008) Aves de rapina: levantamento, seleção de habitat e dieta. Pp. 169-187. In: Matter, S. V., Straube, F., Accordi, I., Piacentini, V., & Cândido Jr., J. F. (Orgs.). Ornitologia e conservação: ciência aplicada, técnicas de pesquisa e levantamento. Technical Books, Rio de Janeiro.

Harrison, C. J. 0. (1965) Allopreening as agonistic behaviour. Behaviour 24: 161-209.

Jaksic, F.M., H. Greene e J. L. Yánez (1981). The guild structure of a community of predatory vertebrates in central Chile. Oecologia 49: 21-28.

Jorge, D.G. & Lingle, G.R. (1988) Kleptoparasitism by Bald Eagles Wintering in south- central Nebraska. Journal Field Ornithology, 59 (2): 183-188.

Palmeira, F. B. L. (2008) Allopreening behavior between Black Vulture (Coragyps atratus) and Southern Caracara (Caracara plancus) in the Brazilian Pantanal. Revista Brasileira de Ornitologia, 16(2):172-174.

Robinson, S.K. (1994). Habitat selection and foraging ecology of raptors in Amazonian Peru. Biotropica 26:443-458

Santos, D. W. (2009) [WA85367, Pulsatrix perspicillata (Latham, 1790)]. Wikiaves, disponível em: <http://www.wikiaves.com/85367> Acesso em Maio de 2011.

Sick, H. (1997). Ornitologia Brasileira. Rio de Janeiro.

Souto, H. N.; Franchin, A. G. & Marçal-Junior, O. (2009). New Record of Allopreening Between Black Vultures (Coragyps atratus) and Crested Caracara (Caracara plancus). Sociobiology Vol. 53, No. 1.

 

Citação recomendada:

Menq, W. (2011) Relações interespecíficas nas aves de rapina - Aves de Rapina Brasil. Disponível em: < http://www.avesderapinabrasil.com/arquivo/artigos/ARB1_3.pdf > Acesso em: .



 

 
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